sexta-feira, 5 de agosto de 2016

O desejo genuíno de ser prostituta em "Jovem e bela"


Quando pensamos em garotas de programa, raramente vem à nossa mente a imagem de uma jovem de 17 anos, colegial, vinda de uma família com condição financeira estável. Contudo, essa menina aparentemente comum que foge ao estereótipo de prostituta é a protagonista do filme Jovem e Bela (Jeune et Jolie) lançado em 2013, em mais uma intrigante narrativa de François Ozon.

No auge de sua adolescência, a jovem Isabelle (Marine Vacth) está ansiosa para ter sua primeira relação sexual. Isabelle encontra a tão esperada oportunidade nas férias de verão com a família, quando conhece na praia meninos de sua idade que se interessam por ela. Apesar de sua primeira experiência sexual não ter sido prazerosa e, até mesmo um pouco violenta pela falta de habilidade do rapaz, a menina entra em uma nova fase de sua vida. Após voltar de suas férias, Isabelle decide explorar mais sua sexualidade. Por ter um rosto muito bonito e atraente, ela sempre chamou a atenção de homens na rua e chegou a ser alvo de assédios em que eles ofereciam dinheiro para que pudessem ficar com ela. Essas contingências combinadas com a personalidade fria de Isabelle deram ânimo para que a menina começasse um empreendimento próprio: o de prostituir-se. Com o auxílio da internet, ela passa a divulgar suas fotos e seu contato para achar clientes. Dentro de pouco tempo, muitos homens passam a combinar encontros diurnos com ela.


O que mais chama atenção no filme é a naturalidade com que a protagonista mantém sua vida dupla em segredo dos amigos e da família. Em determinado momento do filme, Isabelle declara que o momento em que ela está atendendo seus clientes nem sempre é o que a atrai mais para esse tipo de vida. Por ouro lado, o mistério em não saber com quem ela irá se encontrar nem o lugar onde o encontro foi marcado é o que movia o interesse da jovem de 17 anos em continuar se prostituindo. Isabelle menciona que os encontros funcionavam como um jogo pra ela. Certamente, um jogo que mexia com a imaginação erótica da nossa protagonista.

De fato, não havia necessidade financeira envolvida nessa decisão, uma vez que Isabelle não sabia o que fazer com o dinheiro que ganhava dos programas. Dinheiro esse, inclusive, que, mais tarde, foi usado por ela, para pagar sessões com o analista quando, por um acaso, sua profissão é descoberta pela família. Apesar dos pais desaprovarem o que Isabelle fez e obrigarem a menina a desistir dessa profissão, o cotidiano familiar exibido no filme é bem retratado, pois inclui desde as reações escandalosas da família no momento da descoberta até chegar à compreensão, pelo menos por parte do padastro, do desejo da menina.


Esse mergulho na subjetividade feminina no filme de François Ozon mostra o que é a prostituição por puro interesse. Essa narrativa, claro, vai na contramão de outras narrativas que colocam a prostituição como um produto apenas da miséria, isto é, da falta de oportunidades para a mulher, ou como se a mulher que opta por ser prostituta não pudesse gostar de seu trabalho. O grande realce no filme de Ozon é o de mostrar não só que a mulher pode ter o desejo de ser prostituta, mas também de retratar como funciona a convivência familiar quando alguém decide ser prostituta na família.  

sexta-feira, 29 de julho de 2016

A morte social em "A caça"


Numa trama surpreendente, o filme dinamarquês A caça/The hunt (2012) de Thomas Vinterberg demonstra como a vida de um homem pode ser destruída simplesmente por um boato ter se espalhado em uma pequena cidade. Mas qual seria a natureza de um boato tão poderoso? Nada mais, nada menos do que a suspeita de pedofilia. Um dos assuntos menos discutidos em sociedade e o que causa mais ódio nas pessoas quando começam a falar do assunto.

O filme nos mostra a confusão criada sobre um suposto abuso sexual ocorreu com uma das crianças da creche. Como só havia um homem trabalhando lá, o suspeito em potencial se tornou o auxiliar da creche chamado Lucas, vivido pelo ator dinamarquês Mads Mikkelsen. Uma vida inteira sem o histórico de abusos ou de qualquer outro tipo de violência não foi o suficiente para as pessoas mais próximas de Lucas darem, ao menos, o benefício da dúvida. A notícia se espalhou rapidamente pela cidade e ele teve que ser obrigado a se afastar do contato social para sua própria segurança.

Com um clima de suspense muito bem conduzido, acompanhamos o que acontece com a vida de um homem que é acusado de abuso sexual contra uma menininha, através do tratamento que a sociedade lhe dá. A realidade ficcionalizada no filme não poderia ser mais terrível por parecer tão realista. Desde a perda do emprego, dos amigos, da namorada e até da possibilidade de frequentar locais públicos, o protagonista se vê refém de todos os conhecidos e desconhecidos da cidade. O sentimento de revolta e impotência cresce ao longo do filme mesmo depois da investigação da polícia ter concluído que não houve crime algum. Lucas sempre foi inocente e tentar provar isso para as outras pessoas é uma tarefa árdua e, muitas vezes, cruel.



Um dos aspectos que mais chama atenção no filme é a desconstrução da pureza da criança. A personagem Klara (Anikka Wedderkopp), a vítima do suposto abuso cometido por Lucas, conta para diretora o que aconteceu. Em seguida, a diretora da creche faz uma reunião com os pais, para falar dos sintomas que as crianças que sofreram abuso podem ter e, de repente, quase todas as criançassegundo os pais, começaram a apresentar sinais de que sofreram abusos. Depois disso, elas começaram a relatar que também foram abusadas por Lucas. É claro que, após a investigação da polícia, ficou claro que as crianças criaram essas histórias.

Contudo, o descuido dos adultos em lidar com uma suspeita de abuso sexual de uma criança, a desconfiança de todos os conhecidos que leva à julgamentos apressados e o espraiamento sem limites dessa acusação são alguns aspectos que podem ser realçados neste filme brilhante. Por fim, o sentimento de injustiça permanece com o espectator, durante e depois do filme, pela tentativa de Lucas recuperar sua reputação depois de uma acusação dessa natureza.

Obs.: Mads MiIkkelsen foi o vencedor na categoria de melhor ator no Festival de Cannes, em 2012.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

A morte com dignidade em "O filho de Saul"


O filme húngaro O filho de Saul/A Saul fia (2015) de László Nemes é um magnífico exemplo de que nenhum tema pode ser considerado esgotado quando estamos no âmbito da arte. Baseado no contexto da segunda guerra mundial, somos expostos a um grupo de judeus que são obrigados a trabalhar para o exército alemão nazista conhecido como Sonderkommandos. Os membros desse grupo são responsáveis por levar os prisioneiros judeus para a câmara de gás. Após a morte rápida de centenas de pessoas, esses trabalhadores tem pouco tempo para limpar o local onde os judeus acabaram de morrer para poder receber novos grupos e dar continuidade ao abatedouro humano. O ritmo do filme é acelerado, pois não para de chegar judeus no campo de concentração (mais do que fora previsto, aliás). O ritual da carnificina só é finalizado depois que os corpos passam pelo processo de cremação; quando suas cinzas, finalmente, são jogadas nas águas de um rio próximo ao campo de concentração.


Diferentemente de todos os outros filmes sobre o Holocausto que se preocupam em causar forte comoção por milhares de mortes no campo de concentração, este filme foca nas ações do nosso protagonista: Saul (Géza Rohrig). Tendo um perfil pálido, seco e inexpressivo, Saul trabalha feito uma máquina naquele lugar, parecendo já estar habituado com aquela situação imersa no horror. Ele está distante de qualquer tipo de emoção ligada àquele ambiente, concentrando-se apenas na eficácia de seu trabalho. No entanto, conhecemos um pouco mais de Saul quando um garoto que resiste a uma sessão na câmara de gás é atendido por um médico. Rapidamente, os médicos dão um jeito de se livrar daquele jovem judeu. É nesse momento que uma virada no filme acontece, pois Saul fica absolutamente comovido ao ver o menino dar seus últimos suspiros de vida, dando a entender que ele não só o conhecia como também tinha uma forte ligação com ele.


Descobrimos, então, que aquele menino é o filho de Saul; apesar dessa informação soar estranha aos ouvidos dos companheiros de Saul que já o conheciam de longa data. A partir dessa situação, inicia-se uma busca por um rabino que irá realizar uma oração (uma espécie de extrema unção) antes de Saul dar um enterro digno para o menino. Esta é a missão que Saul coloca para si mesmo. Obviamente tudo tem que ser feito na surdina porque o fato de um judeu ter a audácia de professar sua fé num lugar que existe justamente para matá-lo por conta da sua cultura é muito mais do que uma ironia; é uma afronta. Saul busca um rabino dentre os prisioneiros do campo de concentração para realizar esse ritual e, em seguida, enterrar o corpo de seu filho. Ele faz tudo isso para mostrar para os alemães nazistas como se enterra dignamente um ente querido segundo as tradições judaicas.

Dentre as inúmeras situações de perigo pelas quais o protagonista passa, o diretor László Nemes optou por apresentar o cotidiano do campo de concentração por meio do som. Somos expostos a todo tipo de crueldade, sofrimento e angústia apenas pelo som, pois a câmera acompanha o protagonista; algumas vezes posicionada na nuca de Saul ou bem em frente ao rosto dele. Tudo que se passa no segundo plano do filme está embaçado, por isso temos uma visão muito estreita do ambiente. Só podemos ver o que se passa no campo de visão do protagonista. Por isso, a experiência sonora nesse filme é tão importante. 

É impressionante como nós somos perturbados pelas vozes, gritos, choros e gemidos que são uma tentativa de reconstruir o horror que existia no campo de concentração numa maneira diferente de tudo que já vi. Além disso, a língua falada também é outro aspecto que merece destaque no filme, já que os homens começam a construir relações entre si por reconhecerem os dialetos uns dos outros. Também vale a pena ressaltar que este é um filme que reúne vários idiomas da Europa Central como o húngaro, o alemão, o polonês, etc, o que faz os comentários linguísticos presentes nos diálogos serem um forte elemento de identidade entre os personagens.

Neste filme, somos expostos de maneira visceral ao cotidiano de um homem que se agarra a sua crença para resistir ao horror que está a sua volta. Este é o último elemento de dignidade de um homem completamente humilhado, reduzido a nada, que foi forçado a contribuir com o holocausto. Saul tem fé na sua religião, na sua cultura e é movido por ela na tentativa de dar um enterro digno a seu filho, apesar de ter sua existência destruída justamente por essa crença. O final do filme ganha um toque místico de alta sensibilidade pelo fato desse aspecto ser crucial em sua narrativa. Afinal de contas, foi esse gesto de amor ao outro que fez o nosso personagem não se tornar um autômato. Sem dúvidas, essa é uma bela mensagem para um acontecimento histórico que não nos traz esperança. O cinema minimalista europeu ganha mais uma joia para sua coleção com O filho de Saul.