domingo, 6 de setembro de 2015

Dom Quixote: um pagador de promessas


Em 2002, o livro O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha foi considerado o melhor romance de todos os tempos. Antes disso, esse clássico já havia sido elogiado por diversos autores que também fazem parte do cânone da literatura universal como o escritor russo Fiódor Dostoiévski, que, certa vez, fez a seguinte declaração: "Jamais será encontrado um texto tão profundo e poderoso quanto este. A maior e definitiva expressão do gênio humano".

Na Teoria Literária, Dom Quixote é considerado o primeiro romance moderno. O tema do romance de Cervantes é construído em torno do fidalgo Alonso Quejada que, um dia, tem um disparate e se convence de que ele faria renascer o exercício da cavalaria, que já havia desaparecido há tempos. No romance moderno, a figura do narrador representa um resíduo de oralidade das antigas formas narrativas e, nesse espaço, insere-se o elemento da melancolia pelo narrador. Walter Benjamin explora o romance de Cervantes por meio desta figura que irá falar de suas frustrações, angústias, etc. Nesse gênero fundador da modernidade, há o surgimento da consciência moderna que, para Walter Benjamin, está ligado à inserção do impulso melancólico proveniente da perda de um objeto. O desejo da literatura seria, portanto, resgatar esse objeto perdido, negando qualquer separação passada.

O leitor moderno entra em estado de solidão no momento da leitura. O contato com o romance traz para ele a melancolia, que às vezes, vem disfarçada de humor e ironia. Desse modo, o romance funciona como um espelho do leitor que se vê imerso em sua subjetividade, que, por sua vez, é um dos grandes temas da filosofia.

Tradicionalmente, o sujeito moderno é construído por três aspectos: a consciência, a identidade e a autodeterminação. No livro Esferas I de Peter Sloterdijk, busca-se compreender como o ser humano se torna um ser apto a criar relações por meio de uma arqueologia da intimidade na formação da subjetividade. No primeiro livro da trilogia Esferas, depreende-se que o homem, ao nascer, se auto constitui como um cumpridor de promessas que ele põe para ele próprio, no intuito de dar sentido a sua existência para criar um forte vínculo com o mundo. Desse modo, Sloterdijk diz que o homem é um animal mal nascido, pois ele não nasce pronto para lidar com o mundo como os outros animais. Para sobreviver no mundo, ele precisa criar seu próprio mundo por meio da colocação de promessas para agir, isto é, o homem tem a necessidade de tornar-se sujeito, colocando-se em exercício para cumprir as promessas que ele coloca para si próprio.


O engenhoso fidalgo de La Mancha de Cervantes mostra o nascimento do homem como sujeito, isto é, aquele que se põe em ação a partir da criação de seu próprio mundo (de suas crenças). No primeiro volume do romance Dom Quixote, cujo título é “que trata da condição e do exercício do famoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha”, somos apresentados ao nosso engenhoso fidalgo em sua morada e acompanhamos o que o levou a tomar a decisão de se colocar em exercício de cavaleiro andante. O narrador apresenta uma justificativa incomum para a tomada de decisão do Quixote:

[...] este fidalgo, nos intervalos que tinha de ócio (que eram mais do ano), se dava a ler livros de cavalarias, com tanta afeição e gosto, que se esqueceu quase de todo exercício da caça, e até da administração dos seus bens; e a tanta chegou a sua curiosidade e desatino a esse ponto, que vendeu muitos trechos de terra de semeadura para comprar livros de cavalaria pra ler, com o que juntou em casa quantos pôde ganhar daquele gênero. [...] (capítulo I)

Neste primeiro momento, percebemos que Dom Quixote recebeu a influência de personagens fictícios para construir o seu próprio mundo. O narrador conta que o nosso fidalgo enlouqueceu - de maneira bem poética - ao incorporar aquilo que só existia na ficção para a realidade. O elemento da loucura de D. Quixote talvez seja a possibilidade única de enxergar a realidade; essa é a falta de juízo que o acometeu.
Em suma, tanto naquelas leituras se enfrascou, que passava as noites de claro em claro e os dias de escuro em escuro, e assim, do pouco dormir e do muito ler, se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo. Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas e disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia história mais certa no mundo. (capítulo I)
 A partir desse momento, D. Quixote é criado na narrativa (inclusive o próprio nome Dom Quixote de la Mancha é inventado por nosso personagem). Sloterdijk diz que o sujeito é aquele que se coloca em ação por meio do exercício. Logo após a decisão de se tornar cavaleiro andante, D. Quixote vai atrás de aventuras para se consagrar cavaleiro:


(...) pareceu-lhe convinhável e necessário, assim para aumento de sua honra própria, como para proveito da república, fazer-se cavaleiro andante, e ir-se por todo o mundo, com as suas armas e cavalo, à cata de aventuras, e exercitar-se em tudo o que tinha lido se exercitavam os da andante cavalaria, desfazendo todo o gênero de agravos, e pondo-se em ocasiões e perigos, donde, levando-os a cabo, cobrasse perpétuo nome e fama (capítulo I).

O romance, de maneira geral, mostra o exercício de Quixote em se tornar cavaleiro andante em suas ações cotidianas. Dom Quixote entra em milhares de confusões e aventuras criadas por ele mesmo. Uma de suas aventuras mais emblemáticas é a dos moinhos de vento: 
 [...] enquanto Sancho tece seu comentário, Quixote começa a ouvir um som agudo e alto, parando de andar.
Quixote: Veja, Sancho! Bem no início de nossa jornada: um gigante!
Sancho: Um gigante? Aonde, senhor?
Quixote: Ali, Sancho: com os braços enormes e abertos, rodopiando-os no ar.
Sancho: Olhe bem, senhor: “aquilo” não são gigantes e sim moinhos de vento. E o que o senhor pensa que são braços, na verdade são as pás dos moinhos.
Quixote: Ainda que movam mais braços do que o gigante Briareu, hão de me pagar!
Sancho assusta-se com a atitude de seu amo e observa-o, de longe. Acontece a luta entre cavaleiro e gigante/ moinho, culminando na queda de Quixote.
Sancho: Não disse senhor, que eram moinhos e não gigantes?
Quixote: Bem se vê que você nada entende de assunto de aventuras. São as coisas da guerra: de todas, as mais sujeitas a contínuas mudanças. O que eu creio é que... algum feiticeiro, inimigo meu, transformou estes gigantes em moinhos, só para me desmoralizar. Mas pouco há de valer suas más artes contra a bondade da minha espada!
 A crença de Dom Quixote é que o move durante toda a narrativa, isto é, o que o coloca em ação em busca da realização de suas promessas. Esse seria o protótipo de sujeito pensado pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk por meio da colocação de promessas para si próprio que, por sua vez, leva à prática de exercícios.