sábado, 30 de maio de 2015

A unidade dual em "O caderno"


É com essa fotografia, que reproduz a imagem de "gêmeos siameses", retirada do filme húngaro A nagy füzet do diretor János Szász (2013), traduzido para o português como O caderno da esperança, que apresento o tema deste texto. O filme apresenta a história de dois irmãos gêmeos que passam por mudanças drásticas em suas vidas por causa da invasão de tropas nazistas na Hungria durante a segunda guerra mundial. Um dos aspectos que pretendo explorar sobre esse filme é o trabalho formidável do diretor em mostrar, através de várias estratégias, como os dois irmãos gêmeos são uma só pessoa.

Logo no início do filme, a mãe dos dois personagens principais faz uma declaração significativa, dirigida ao pai, que irá se desenvolver ao longo da trama, afirmando que "os dois são um", no momento em que o pai pensa em separá-los devido ao perigo iminente da guerra que os aterrorizava. No final desse breve conflito familiar, os pais decidem mandar os dois irmãos para viver no interior do país junto com a desconhecida avó, em uma realidade social inferior àquela que os dois meninos estavam acostumados a viver. É a partir disso que a trama do filme se desenvolve de maneira original e surpreendente.

Um dos elementos mais importantes para a narrativa do filme é o caderno que os meninos ganham quando deixam sua casa e seus pais. O fato é que os dois meninos possuem apenas um caderno e, em vários momentos, nós, espectadores, não sabemos quem está escrevendo. É nele que os dois irmãos começam a planejar sua maneira de sobreviver ao convívio não só com tropas do exército nazista mas também com todas as pessoas daquele lugar esquecido por Deus, registrando tudo o que está acontecendo com eles. Nessas cenas da escritura do caderno, percebemos que não há nenhum conflito entre eles em relação a quem irá escrever no caderno e o que será escrito lá. É como se os dois compartilhassem as mesmas ideias e os mesmos sentimentos diante de todos os acontecimentos.



Outra cena que reforça esse jogo do dois em um é a dos gêmeos lendo juntos em voz alta, onde a voz de um irmão torna-se o eco da voz do outro irmão, ampliando, assim, a ressonância entre eles. Nessas cenas de leitura ressonante dos dois irmãos, é inevitável lembrar das ideias do filósofo alemão Peter Sloterdijk em que ele defende que nós, seres humanos, somos duplos por estarmos sempre em companhia de um outro, que pode ser facilmente percebido pela voz que conversa conosco e que não nos perturba, pois reconhecemos que esse outro que está ali também faz parte de nós.


Em um determinado momento do filme, há um bombardeio na cidade onde os dois meninos decidem fazer uma experiência. Nessa cena, os dois irmãos tornam-se o sentido um do outro, onde um venda os olhos e o outro tampa os ouvidos, fazendo com que eles se tornem os olhos e os ouvidos um do outro. Aqui fica ainda mais claro compreender que um irmão faz parte um do outro física e mentalmente. Outra série de cenas que nos dá a impressão dos dois irmãos serem apenas uma pessoa refere-se ao momento em que os gêmeos estão dormindo juntos. Toda vez que eles acordam (ou são acordados), os dois meninos sempre abrem os olhos ao mesmo tempo. Essa cena é repetida inúmeras vezes ao longo do filme, passando-nos a ideia de que há uma ligação muito forte entre os dois irmãos. (Vale mencionar aqui as diversas cenas que compõem o filme e que quebram nossas expectativas quanto ao que vai acontecer com os gêmeos.)


Apesar dos meninos passarem por inúmeros maltratos ao longo do filme, a única dor que seria insuportável para eles é o momento em que estão separados; esse é um dos únicos acontecimentos que nos mostra um forte sofrimento para os dois meninos que, até então, pareciam conseguir resistir à toda crueldade que os cercava. Esse fato é bastante significativo, pois, segundo a teoria da subjetividade de Sloterdijk, o sujeito se desenvolve no "espaço-com"; não podemos nos separar do nosso "com" íntimo que nos faz companhia e nos constitui como sujeitos.

Ao final do filme, quando já não há mais guerra e os meninos já não tem mais ninguém que pudesse cuidar deles, ficamos com a sensação de que cada um dos gêmeos se tornou uma pessoa diferente, isto é, de que os irmãos se tornaram individualizados. Podemos perceber isso através de diversos detalhes como o fato dos meninos começarem a dormir separados, usarem roupas diferentes, e, finalmente, se livrarem do caderno. Contudo, nada nos impede de pensar que aquela unidade na qual cada um deles se transformou continua sendo dual, pois, em seu cerne, ela se formou e permanecerá sendo assim.

Observações:
1.     Esse texto foi fruto das conversas e discussões feitas após eu ter assistido a esse filme no cinema durante o IV encontro do filósofo Peter Sloterdijk no CEFA (http://cefa.pro.br/), em São Paulo.

2.   Não gostei da escolha do título do filme em português "O caderno da esperança", pois na trama do filme não há nada relacionado à ideia de esperança. Além disso, nagy em húngaro é grande e fuzet, caderno. No máximo, eles poderiam ter traduzido o título, como em francês (Le grand cahier), para "O grande caderno".