O filme francês Azul é a cor mais quente (La vie d’Adèle/Blue is the warmest color, 2013) de Abdellatif Kechiche mostra o surgimento do amor-paixão na vida de duas pessoas. Em primeiro lugar, eu tenho que ressaltar aqui (e elogiar) a sensibilidade do diretor em trazer para as telas do cinema uma história inspirada em um HQ lançado na França em 2010 por Julie Maroh. Sabemos que muitos filmes são inspirados em livros e os que são inspirados HQ normalmente contam histórias de super-heróis. Mas esse não é caso do HQ que narra uma história comum de uma garota normal que vê sua vida transformada ao encontrar sua primeira paixão. Por isso mesmo, esse filme tem um grande potencial de identificação com os espectadores.
Para falar sobre o aspecto do
filme que mais me impressionou, que foi a percepção do sentimento entre as duas personagens através do olhar, eu vou recorrer a um
mito grego que narra o surgimento de uma paixão entre duas pessoas de uma maneira bem peculiar (Li esse mito pela primeira vez
no capítulo 1 do livro Esferas
I do filósofo alemão Peter
Sloterdijk). No mito de Lísias e Fedro, Lísias está contemplando
Fedro completamente fascinado pela beleza de seu rosto, enquanto este, por sua
vez, fixa seus olhos aos olhos de Lísias. Neste momento, Fedro envia faíscas de
luz para os olhos de Lísias junto com seu espírito vital. Em seguida, durante
essa troca de olhar, o sangue de Fedro vira vapor e é transportado para dentro
do coração de Lísias, onde se condensa, convertendo-se novamente em sangue. A partir de agora, Lísias possui
o sangue de Fedro em seu coração. No mesmo instante em que isso acontece, os
dois passam a se desejar intensamente, já que um faz parte materialmente do
corpo do outro. Fedro, portanto, passa a seguir Lísias, pois seu coração chama
o sangue de volta para o lugar de onde veio e Lísias não pode mais deixar
Fedro, já que o sangue que está em seu coração quer voltar para a antiga
morada. É assim que a atração intensa e inexplicável entre duas pessoas
apaixonadas é apresentada no mito grego, pela transferência (encantada) do
sangue de um
amante para outro, onde o amor físico é
um envenenamento material e um encantamento a distância.
O filme é dividido em duas partes; na primeira, ele irá mostrar os acontecimentos no dia-a-dia comum de uma adolescente até o tão esperado dia da chegada da sua primeira paixão. O encontro entre as duas personagens Adèle (Adèle Exarchopoulos) e Emma (Lèa Seydoux) ocorre de maneira inesperada; e é em questão de poucos segundos que esse sentimento surge através da troca mágica entre o olhar das duas meninas que se cruzam em um sinal no meio da rua. Aliás, quero comentar aqui que gosto, particularmente, da maneira como o diretor incorpora um toque de misticismo um pouco antes desse encontro entre as duas meninas, quando Adèle escuta uma música tocada por um artista de rua, criando uma espécie de presságio na personagem principal em relação a algo inexplicável que irá acontecer. Antes de dar continuidade ao texto, é recomendável que você, leitor, assista a essa cena do filme para sentir o que está sendo dito no mito acontecer com essas duas meninas:
É claro que a partir dessa paixão
se desenvolverá o amor entre as duas meninas. Nesse momento, entra em questão a
maturidade de Adèle em viver essa nova fase de seu relacionamento com Emma.
Devido aos acontecimentos que se sucedem na história, passamos a acompanhar uma
nova fase dos sentimentos de Adèle quando ela perde o amor de Emma na
segunda parte do filme. Conhecemos, então, o outro lado da paixão: o
sofrimento, que é tão intenso quanto à beleza que ele traz para os amantes. Ao
ver a protagonista se acostumar a conviver com essa dor em sua solidão,
percebemos que sua paixão por Emma continua lá, viva.
Chamo atenção agora para o final
do filme, que não poderia ser melhor escolhido, pois ele termina de maneira
indefinida em relação ao que acontecerá com o sentimento que Adèle ainda sente
por Emma, ou melhor, que as duas ainda sentem uma pela outra. O filme deixa bem
claro que essa paixão continua viva nas duas, apesar de Emma estar em um novo
relacionamento, amando outra pessoa. Em relação a Adèle, o filme termina nos
deixando um pouco angustiados por não saber o que irá acontecer em seu futuro,
apenas temos a certeza de que a chegada e a perda dessa paixão transformou
completamente a vida da nossa querida personagem. Podemos até chegar a dizer
que a vida de Adèle se divide em antes e depois de Emma.
Para não terminar esse texto de maneira depressiva ou
triste, já que é assim que nos sentimos quando acabamos de assistir a esse
filme, eu deixo aqui registrada minha admiração às duas atrizes que
interpretaram maravilhosamente bem essas duas personagens. Gostaria de lembrar
que as duas são as únicas atrizes na França que levaram para casa o prêmio
Palme d’Or/Palma
de Ouro junto com o diretor do filme (normalmente apenas do diretor ganha esse
prêmio). Após as gravações do filme, as duas se tornaram grandes amigas. Por
hoje é só, e eu fico por aqui admirando essa duas belezas, rsrsrs...